As novas exigências regulatórias europeias, que visam aumentar a circularidade dos materiais na indústria automóvel, apresentam diversos desafios aos fabricantes de peças plásticas para este segmento. Em entrevista à InterPlast, Gonçalo Tomé, vice-presidente da Associação Portuguesa da Indústria de Plásticos (APIP) para a área Automóvel e Peças Técnicas, destaca a dificuldade de acesso a materiais reciclados de qualidade e a necessidade de se criarem processos de rastreabilidade mais eficientes ao longo da cadeia de valor.
A indústria automóvel está a viver uma transformação sem precedentes devido às novas exigências europeias. A proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho estabelece metas ambiciosas de circularidade para a conceção de veículos e gestão de veículos em fim de vida (VFV). Entre os objetivos, estão a incorporação de 25% de plástico reciclado nos novos veículos até 2030, com pelo menos 25% deste material proveniente de VFV, e a reciclagem de 30% do plástico recolhido.
Estes objetivos têm como finalidade reduzir a dependência de matérias-primas virgens, promover a economia circular e minimizar o impacto ambiental do setor automóvel. Contudo, os desafios são significativos, especialmente para os fabricantes de componentes plásticos, que vão precisar de adaptar os seus processos produtivos às novas exigências.
Outro ponto importante é a rastreabilidade dos materiais. Cada componente deverá ser identificado com mais informações sobre a sua composição e reciclabilidade, prática que algumas empresas já adotam, mas que agora será obrigatória.
Apesar de todas as alterações que se anteveem no horizonte, Gonçalo Tomé refere que a indústria automóvel portuguesa está, em grande medida, preparada para as novas exigências, fruto da experiência acumulada e da capacidade de adaptação a requisitos normativos anteriores. Isso acontece, desde logo, com alguns fabricantes automóveis que exigem há anos a incorporação de materiais reciclados nalgumas peças, esclarece.
Segundo Gonçalo Tomé, as empresas portuguesas têm demonstrado capacidade de adaptação a estas mudanças. “As empresas que já trabalham no setor automóvel estão habituadas a antecipar as necessidades do mercado e a lidar com pressões normativas há bastante tempo”, afirma.
Apesar deste sentimento de confiança, o representante da APIP reconhece que a implementação das metas europeias exigirá esforços adicionais, nomeadamente no acesso a plásticos reciclados de qualidade e na criação de processos de rastreabilidade mais eficientes ao longo da cadeia de valor.
A disponibilização de plástico reciclado de qualidade depende de fatores externos. Atualmente, a maior parte do plástico utilizado na indústria automóvel portuguesa é importada de países como Alemanha e Coreia, o que aumenta os custos e a pegada ambiental.
Adicionalmente, muitas empresas portuguesas já implementam práticas de ecodesign, incluindo informações sobre reciclabilidade nas peças de plástico automóvel há mais de 20 anos. Embora a reciclabilidade não seja uma novidade, as metas obrigatórias devem acelerar essas práticas e consolidar a economia circular.
Embora as empresas estejam a avançar no cumprimento das metas de sustentabilidade, a sua capacidade de inovação será determinante. As mudanças exigem o desenvolvimento de novos métodos de fabrico, o uso de plásticos técnicos reciclados e a integração de ferramentas de simulação que reduzam o desperdício na produção.
O exemplo da Skoda
No congresso internacional VDI PIAE (Plastics in Automotive Engineering) deste ano foi exibido um 'concept car' denominato IVET, desenvolvido pela Skoda para demonstrar 20 aplicações com materiais reciclados.
Uma das soluções interessantes que o carro apresenta em vários locais é um novo conceito de multi-camada monomaterial, ou seja, em que todas as camadas são quimicamente o mesmo material, apenas fabricadas com uma tecnologia diferente, de modo a terem propriedades diferentes. Por exemplo, na produção dos estofos pode ser utilizado rPET para fabricar duas camadas, coladas com a mesma base adesiva, o que faz com que estes elementos possam ser reciclados como um todo. De um ponto de vista prático e funcional, a Skoda acredita que o utilizador não conseguirá distinguir entre materiais reciclados e convencionais.
Para a produção da prova de conceito foram utilizados resíduos de embalagens de iogurte (no revestimento do interior das portas), colchões de poliuretano usados (em peças de isolamento acústico e amortecimento do chão do veículo), caixas de baterias de automóveis (na coberturas dos arcos das rodas, no suporte de fecho do capot e na proteção do canal de água sob o para-brisas), material de para-choques antigos (nos novos para-choques), borracha reciclada (na vedação da porta) e até óleo de cozinha reciclado (na proteção da soleira do carro).
Um dos maiores obstáculos para alcançar as metas é a disponibilidade de plástico reciclado de qualidade e em quantidade suficientes. Embora a indústria automóvel seja um dos maiores consumidores de plásticos técnicos, a reciclagem de materiais pós-consumo ainda enfrenta grandes desafios.
Gonçalo Tomé alerta que o mercado de reciclados já está sob pressão de outras indústrias e que será necessário um esforço conjunto para evitar especulação e garantir a certificação da origem dos materiais. Além disso, algumas peças, como módulos de airbags, exigem plásticos virgens para garantir a segurança e o desempenho. “Não vejo, por exemplo, um módulo de airbag ser feito com material reciclado que possa comprometer a estabilidade e a segurança”, afirma.
A rastreabilidade dos materiais reciclados também é um ponto crítico. Segundo a proposta, cada componente deverá ser identificado com maior precisão, algo que depende de avanços tecnológicos na separação e tratamento dos resíduos.
Os automóveis de luxo, frequentemente compostos por materiais de alta qualidade, levantam questões sobre reciclabilidade. Peças que combinam diferentes materiais, como pele sintética ou natural com substratos de polipropileno, dificultam a separação e reciclagem, tornando-se um desafio ambiental.
A transição para veículos elétricos apresenta desafios e oportunidades para os plásticos. A necessidade de reduzir o peso dos veículos para melhorar a eficiência e a autonomia coloca os plásticos em destaque como substitutos de metais mais pesados.
Nos últimos anos, a utilização de plásticos nos automóveis aumentou cerca de 30%, contribuindo para a redução de peso dos veículos. Esta tendência inclui soluções como fundos aerodinâmicos e alojamentos de baterias em plástico, que são mais leves e eficientes.
Gonçalo Tomé sublinha que os veículos elétricos exigem soluções aerodinâmicas mais eficientes, com peças plásticas leves que reduzem o arrasto. Os alojamentos das baterias também oferecem uma oportunidade importante, já que os plásticos são mais leves e apresentam menos risco de curto-circuito em comparação com o metal.
Ainda de acordo com o representante da APIP, a redução do peso dos carros contribui diretamente para a melhoria da eficiência energética, enquanto o plástico facilita a reciclagem, permitindo maior incorporação de materiais reciclados nos processos produtivos.
Gonçalo Tomé enfatiza também que os plásticos têm um consumo energético relativamente baixo no processo de reciclagem, o que os torna uma opção mais eficiente comparado com outros materiais como vidro ou alumínio.
Por todos estes motivos, quanto a este tema, o responsável da APIP remata afirmando que “esta transição, longe de ser uma ameaça, representa uma oportunidade para o setor”.
A reciclagem de peças provenientes de VFV é outro grande desafio. Atualmente, grande parte dos veículos abatidos na Europa não são desmontados, mas compactados e enviados para reciclagem de metais, o que dificulta a recuperação de plásticos.
Gonçalo Tomé defende, por isso, que a triagem e separação seletiva de materiais no abate de veículos deve ser uma prioridade para alcançar as metas de reciclagem impostas pela União Europeia. Contudo, este processo exige regulamentação e investimentos em infraestrutura por parte dos Estados-Membros.
Além disso, a exportação de veículos usados para fora do espaço comunitário dificulta o controlo do destino final dos materiais. Para mitigar este problema, será necessário reforçar a rastreabilidade ao longo do ciclo de vida dos veículos.
"A triagem e separação seletiva de materiais no abate de veículos deve ser uma prioridade”, defende Gonçalo Tomé.
O setor de plásticos representa cerca de 20% do volume de negócios da indústria portuguesa de componentes automóveis, que atingiu 14,3 mil milhões de euros em 2023. Isso demonstra a relevância do setor para a economia nacional, mas também destaca a necessidade de apoiar as empresas na transição para modelos mais sustentáveis.
Embora a maioria das empresas portuguesas já tenha adotado medidas para reduzir a pegada carbónica, a incorporação de plásticos reciclados poderá aumentar os custos de produção. Estes custos, associados às exigências de certificação e ao acesso a materiais reciclados, poderão impactar a competitividade no mercado global.
Apesar dos desafios, Gonçalo Tomé acredita que o setor está bem posicionado para lidar com estas mudanças. “Muitas empresas já alcançaram a neutralidade carbónica em âmbitos como o uso de energia renovável e o aproveitamento de materiais reciclados”, afirma.
Com o apoio de políticas públicas e a colaboração entre diferentes agentes do setor, a transição para uma economia circular poderá impulsionar a competitividade da indústria portuguesa e contribuir para a redução do impacto ambiental do setor automóvel.
Em última análise, o sucesso desta transição dependerá não só da capacidade técnica das empresas, mas também da criação de mercados estáveis para materiais reciclados e do alinhamento de estratégias entre reguladores, fabricantes e consumidores.
Atualmente, os métodos produtivos mais amigos do ambiente, embora cada vez mais valorizados, ainda não se afirmam como o principal fator diferenciador para os fabricantes e empresas. O preço continua a ser o elemento decisivo na escolha dos consumidores e na competitividade. Contudo, como sublinha Gonçalo Tomé, quando os custos entre quem aposta em práticas mais sustentáveis e quem não o faz forem equiparados, o fator diferenciador passará a ser a adoção de métodos produtivos ambientalmente responsáveis. Este cenário, impulsionado por regulamentações e sensibilização dos consumidores, poderá redefinir o mercado e acelerar a transição para modelos mais sustentáveis.
A solução passa por educar os consumidores sobre o impacto ambiental dos veículos e as suas peças. A União Europeia está a desenvolver uma análise do ciclo de vida simplificada para avaliar a pegada ambiental de cada componente de um automóvel, influenciando assim as escolhas dos consumidores. No entanto, ainda há muito a fazer para garantir que o consumidor tenha informações claras e objetivas para tomar decisões mais sustentáveis, conclui Gonçalo Tomé.
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